segunda-feira, abril 27, 2009

 

Conto final

Estava um dia frio, apesar do calendário indicar que a Primavera desse ano já tinha mais de um mês. Ernesto sentia-se só, porque fazia já algum tempo que não estava com a sua companheira, ela andava muito ocupada e o tempo que tinham um para o outro era quase nenhum. Quando se viam era por uns momentos e em contextos familiares que não permitiam expressar grandes gestos de carinho. Assim, ele temia pela relação, mas apostava em que a breve trecho surgisse uma aberta nas ocupações de ambos para poderem reavivar a chama da sua relação.
Ernesto tentava ocupar o seu tempo com algumas saídas com amigos, recordar velhos momentos de uma juventude que caminhava a passos largos para o adulto que ele sentia ainda não ser, apesar do que constava no seu bilhete de identidade. Sentia uma ânsia enorme de assumir compromissos, que esses sim lhe trariam definitivamente uma maioridade a que ele ainda não se adaptara, não por medo mas por falta de hábito. Sentia o desejo de se tornar “chefe de família”, não pelo chefe, mas pela família.
Mas no final desse dia, que tão agoirento surgira, ela falou-lhe de forma diferente. Trocou o usual encosto de lábios com lábios, por uma oferta de face que ele deveria assinalar com um beijo. Logo ali ele estremeceu interiormente, e recusou a oferta daquela face que tanto amava pelo habitual toque de lábios. Mas esse foi o prenúncio daquilo que em seguida se sucederia. Ernesto já pressentia o nascimento, nos lábios da sua amada, das palavras que o iriam ferir, de uma ferida que não fecha que não sara, que dilacera para sempre mas que não é medicamente diagnosticável. Foi com um horror ainda controlado que ouviu: “precisamos falar”…
O frio conquistou o seu corpo, não era possível controlar o tremor. Ela notou-lhe as mãos geladas. Alguma coisa tinha entrado no seu corpo, estava no estômago e mexia-se desconfortavelmente. Mas todos os sintomas eram apenas um prenúncio da doença que ali contraíra e que se prolongaria, para sempre.
Os argumentos não surgiam como desejava, o choque tolhia-lhe o pensamento, apenas se permitia garantir-lhe que continuaria a ser seu amigo, que queria estar sempre presente em qualquer necessidade dela. Apenas soube oferecer-se-lhe, mais uma vez. Ela soube-o, e agradeceu: “tu não existes”. Fraco consolo para Ernesto, juntamente com aquele último abraço, e aquele beijo de despedida em seu pescoço, que o deixaria marcado eternamente.
Ernesto deixou de viver, passou a sobreviver cada dia, na esperança, primeiro de um retorno, depois de um novo amor e por fim de uma cura para aquele sentimento, que já não se permitia.
Com auto estima pelo chão procurou tudo o que o pudesse manter vivo, e começou por tentar encontrar alguém que o desejasse, pelo menos um pouco como ele ainda desejava a sua amada. Uma mulher não se esquece com outra, diziam uns. Ele sabia que não era o esquecimento que iria encontrar. Talvez procurasse um pouco de vingança, mas vingança de quem? Dela? De si próprio?
E assim surgiu outra pessoa, outra rapariga que se anunciava como interessada nele, tal como havia acontecido cinco anos antes com a sua amada.
Ernesto não pensou demasiado, precisava fazer alguma coisa, a dor era insuportável, sentia que nada poderia ser pior e que qualquer coisa que fizesse só poderia melhorar e nunca piorar a sua dor.
Deixou-se envolver, ou queria deixar que isso acontecesse, tentou colocar tudo da sua parte para esse envolvimento. Há muito que ele não tinha uma relação assim. Sexo, só, sem mais nada a dar nem a esperar que uns momentos de prazer. Pensou que faltaria alguma coisa. Que faltava a cumplicidade, a intimidade para além dos corpos nus, aquela que é interior. Aquela necessidade de satisfazer as necessidades do outro. Aquela procura do olhar do outro, aquele entrelaçar de mãos nos momentos de entrega total. Aquelas palavras, umas doces, outras violentas, outras incomunicáveis.
O tempo passou, como dizem nada como ele para levar uns problemas e trazer outros. Mas a dor manteve-se no peito, à espera de qualquer oportunidade para se manifestar de novo. E as oportunidades foram surgindo, mas Ernesto ia combatendo a dor com mais sexo, com mais parceiras. Procurava desesperadamente alguma que o fizesse apaixonar-se de novo, não porque procurasse outra relação estável, mas porque assim poderia transferir finalmente o seu amor.
Dois meses depois voltou a vê-la. Ela tinha estado envolvida também com outra pessoa. Alguém que havia estado de férias no México e que a contagiou com gripe suína. Depois tinham-se abandonado. Ela descobriu que não encontraria de novo alguém que a ouvisse como Ernesto ouvia. Que estivesse sempre presente quando necessitasse chorar, como Ernesto estava. Que abdicasse da companhia dos amigos para lhe fazer companhia a ela, tal como Ernesto havia feito.
Ernesto soube por amigos da situação que a sua (ainda?) amada vivia. A dor que estava já mais sossegada e escondida dentro de si, voltou a rebentar, com uma nova força regenerada. Ele sentiu vontade de a ver, de a ter nos braços mais uma vez, de beijar, de sentir o peito dela contra o seu. Mas dentro de si digladiavam-se duas vontades. A outra mandava-o surgir-lhe com uma das novas parceiras, mostrar-lhe a felicidade que conseguia já voltar a sentir, dizer-lhe que a vida sem ela era possível para ele. Que já superara aquela dor. Esta vontade dizia-lhe pois para lhe mentir, pela primeira vez desde que a tinha conhecido.
Que fazer Ernesto? Ser ou não ser eis a questão. Ser ele próprio de novo, sincero e honesto com o que talvez ainda sentisse por ela, ou ser aquele outro que julgara superada a trágica separação e havia descoberto uma nova vida.
Venceu a sinceridade e voltou a falar-lhe e perguntar como estava. Ele sentia que poderia curá-la, como sempre sentira.
Além da medicação ela passou a tomar doses de carinho, atenção. Sentiu o companheirismo que lhe faltava havia algum tempo. Acabou por recuperar pouco a pouco, apesar da descrença médica. Ernesto dedicou-se-lhe de corpo e alma, tal como sempre fizera.
Mas apesar da alegria que Ernesto voltava a sentir, completa e plena. A sua imagem definhava um pouco de dia para dia. Sentia-se fraco, cansado, mas associava tudo à entrega sobre-humana que dedicava à sua (novamente) amada.
Ouviam música juntos, lia-lhe poemas, viam filmes e muitas banalidades que lhes permitissem estar juntos.
Um dia ela sentiu-se mais forte, mais animada, sentindo-se de novo atraente e mulher, começando a acariciá-lo de forma mais sensual. Ele sentiu que estava a sonhar, que entrava numa letargia doce, e foi-se entregando às carícias que ela lhe dispensava. Pouco a pouco ficaram nus. Como era bom revê-la assim, ainda que Ernesto se sentisse quase sem forças para a segurar. Ela pensou que ele estava com medo de a magoar por ainda a achar algo fraca, mas foi continuando. Depois uniram-se, ele penetrou-a, e foi dentro dela que ele faleceu.
Ela descobriu depois que o havia contagiado, e que no afã de a tratar ele descuidara a sua própria saúde. Ninguém associou os sintomas que Ernesto apresentara àquela doença, que os havia voltado a juntar, mas sim ao esforço que ele fazia dia a dia para se lhe dedicar.
Alguns disseram que como na canção se fez jus ao “amor ser uma doença, quando nele julgamos ver a nossa cura”.
Mas o último pensamento de Ernesto foi para ela. E ao som do Soneto do Amor Total, ele sentiu que cumpria o seu destino:
“E de te amar assim, muito e amiúde,
É que um dia em teu corpo e de repente
Hei-de morrer de amar mais do que pude”

Comments:
No meu ponto de vista, a um conto final há a forte hipótese de se seguir um best seller.
É natural que atravesses um período de menor inspiração, mas é certo que encontrarás, mais tarde ou mais cedo, a veia da escrita… a musa inspiradora.

Abraço
 
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